literatura
Insularidade e Literatura
Por: Danny Spínola
A questão da Insularidade e Universalidade, creio revestir-se de um certo interesse para uma abordagem na literatura cabo-verdiana, tendo em conta as similitudes e, também, divergências que certamente serão apreciadas, não só pelas abordagens díspares atinentes às multiplicidades de caraterísticas que aproximam esses dois conceitos/realidades, mas também pelas semelhanças socioculturais que certamente possuem, derivadas dos processos históricos idênticos e heterogéneos, que advêm da sua historicidade.
Da mesma forma, pode-se falar da universalidade dessa literatura, como fator de convergência, visto que a mundivisão de grandes problemas políticos, sociais e étnicos, que possuem, se encontram intimamente ligada e plasticizada, de uma forma indelével, ao pulsar universal, não só dentro da poética das ilhas, de uma voz ou testemunho importantíssimo da tragédia de um povo (à semelhança de muitos outros), no quadro de uma sociedade colonial-escravocrata, a qual tinha como sustentáculo e “ratio” fundamentais a negação do negro, enquanto entidade social e racial desprovida da possibilidade de amar livremente, como, também, pela temática cosmopolita e intervencionista, de cariz revolucionário, de contestação social e de denúncia.
Sendo a Literatura cabo-verdiana uma realidade histórica, relativamente recente, podemos falar de uma poesia romântica, surgida na transição do séc. XIX; de uma poesia ufanista, positivista e universalista, “cujas musas se banhavam tanto na antiguidade greco-latina como na Europa Moderna e no “mare nostrum” cabo-verdiano; de uma poesia nativista e patriótica, pugnada pela afirmação dos valores culturais nacionais e a reafirmação da condição humana, estribada na sede de Justiça; de uma poesia modernista, cuja temática se centra na dissecação das raízes profundas da identidade e idiossincrasia do povo cabo-verdiano e na indagação poética, de inestimável pertinência ética, em que a denúncia social ocupa um lugar privilegiado, a par da interrogação sobre a sua identidade.
Sendo também pioneiros na busca das raízes crioulas e da crioulidade, como valores basilares da caboverdianidade, podemos aflorar o tema da recuperação positiva das raízes negras, no contexto da plena afirmação da poesia social, neorrealista portuguesa, e da negritude, assim como o aprofundamento da questão social cabo-verdiana, mas, já baseada na esperança de revolta e na negação do destino enquanto entidade inelutável.
Ainda se pode abordar a questão da consciencialização na Literatura cabo-verdiana; a abordagem marxista da problemática da escravatura, com a evidenciação do papel do Negro e do Mulato na criação de uma nova sociedade; o inconformismo ilimitado face à organização de todas as crises ínsitas na situação cabo-verdiana: e a natureza eminentemente contestatária de práxis anticolonial e de rebeldia, assim como a afirmação de Africanidade, em uma cultura miscigenada, em consonância com a afirmação de um nacionalismo forte, originando uma certa poesia panfletária de luta e de protesto, que se viriam a consolidar-se com a independência.
De igual modo, é lícito falar aqui de ruturas, de cesuras nesse fazer poético insular e universal, sendo mister incluir questões geracionais e a eminente valorização e revigoração literária, a partir da independência que viria a abrir novas portas de manifestações artísticas, de entre as quais a dialética de uma poesia e estética, correlacionada com a questão da condição humana, o que originaria, por seu lado, mensagens de pendor filosófico, metafórico e existencialista, com uma linguagem eminentemente universalizante.
Creio que essa breve introdução poderá ser ilustrativa das grandes linhas de força desse temário, a ser desenvolvido, o qual, evidentemente, não prescindirá da satisfação de esboçar o perfil das eminentes personalidades que o configuram, tanto como a de apresentar os discursos fulcrais que marcam esses percursos.
Vai-se tentar desenvolver esta tese, contida nesta afirmação inicial, através da historicidade e, principalmente, da literatura.
O propósito é demonstrar como é que uma literatura local poderá ser insular e ao mesmo tempo universal, pela ressonância e reverberações que se inscrevem no corpus dos textos literários.
“O Escravo”, de José Evaristo de Almeida, um dos primeiros romances, de temática autóctone, publicados nas colónias portuguesas em África, isto em 1856, demonstra que havia, então, uma elite cultural com um bom domínio da língua portuguesa em Cabo Verde, apontando para um grande substrato da cultura lusófona no percurso da cabo-verdianidade.
Os Almanaques de Lembrança Luso-Brasileiro são testemunhos também de que sempre houve, em Cabo Verde, comunidades de língua portuguesa, sendo exemplo desse desiderato os vários prémios literários ganhos por escritores cabo-verdianos.
No que diz respeito à história da literatura cabo-verdiana que, segundo muitos estudiosos (e por uma questão de metodologia), está dividida em 3 momentos (tese que, particularmente, não se comunga de todo aqui), vamos encontrar um meio literário eloquente, relativamente ao domínio da língua portuguesa pelos cabo-verdianos, mas também eloquente quanto à cultura cabo-verdiana de base lusófona. Encontramos, já, desde os ditos Pré-Claridosos, como José Lopes, Guilherme Dantas, Guilherme Ernesto, Januário Leite e outros, um domínio profundo da língua portuguesa e dos cânones literários portugueses, mas sempre com a questão identitária subjacente, revelada na procura das Hespérides, das ilhas arsinárias da Atlântida perdida, em poemas de José Lopes. Encontramos, em todos os escritores cabo-verdianos, dessa época, um posicionamento claro relativamente entre o ego da Pátria, lusófona, e o alter-ego da nação, crioula e mestiça, tais como José Lopes, Pedro Cardoso e Eugénio Tavares, sendo claro que tinham Portugal como Pátria, mas que se sentiam, incontestavelmente, cabo-verdianos, de uma certa cultura lusófona, e não portugueses, embora destes descendentes – Como vós outros, nós também amamos/ A nossa Pátria, a Mãe/ De vossos pais, que é nossa mãe também (…)./ Manuel Ferreira afirma na introdução à compilação da Revista Claridade, que eles “ (…) Suportaram a incómoda ambiguidade, reivindicando e sentindo a sua genuína condição de cabo-verdianos portadores de uma cultura específica e, ao mesmo tempo, aceitando a oficial paternidade portuguesa”, lusófona.
Alfredo Margarido, a propósito, afirma que Pedro Cardoso adotou o pseudónimo Afro, rompendo com a visão pró-europeia e pró-portuguesa da maior parte dos intelectuais cabo-verdianos da sua geração. Embora tenha sempre presente a pátria portuguesa e lusófona, (são emblemáticos alguns poemas dele que atestam isso), tal como o seguinte exemplo - “Nasci na ilha do fogo/ sou, pois, cabo-verdiano/ E disso tanto me ufano/ Que por nada dera tal (…) Se filho de Cabo Verde/Assevero – fronte erguida - /Que me é honra a mais subida/ Ser neto de Portugal “; ou quando diz “A luz também jorra neste belo arquipélago e a voz de Cabo Verde é já uma demonstração de vida, de independência e de liberdade de pensamento, que constitui um dos principais direitos dos povos”.
Encontramos, inclusive, escritores dessa época, como Eugénio Tavares e Pedro Cardoso que dominavam, de forma exímia, a língua portuguesa, mas que fizeram, também, questão de cultivar a língua crioula, como forma de identidade, traduzida numa óbvia cabo-verdianidade nativista, cabo-verdianidade essa que é exacerbada por Eugénio Tavares nas suas crónicas anticoloniais, de forte contestação, perante a situação de opressão e repressão. Esta temática é secundada por Pedro Cardoso no seu jornal O Manduco, que vergastava duramente o dorso do colonialismo fascista.
O poeta José Lopes, no seu poema, disse “é pátria a terra inteira”, diz ainda num dos seus inúmeros escritos “Tenho anseios de que algum dia, embora no derradeiro momento da vida, pudesse ter o prazer de ver estas pobres ilhas independentes”; não obstante ter exaltado sempre a pátria portuguesa, lusófona.
Com a moderna poesia cabo-verdiana, iniciada com os Claridosos, esse quadro de ambivalência linguística e cultural recrudesce, tornando-se mais evidente a cultura crioula de língua oficial portuguesa/lusófona e expressão crioula, não distante da lusofonia, devido ao seu carácter sincrético. Aliás, os Claridosos trilharam um pouco as peugadas dos brasileiros na afirmação de uma língua brasileira e não portuguesa, tais os exemplos de Amar Verbo Transitivo e Macunaíma, de Mário de Andrade, com as suas teses explícitas de construção de uma língua própria, existente, diferente daquela que a engendrou.
Lembramos aqui a semana de Arte Moderna, que teve lugar em S. Paulo de 13 a 17 de fevereiro de 1922, a qual teve grande repercussão na literatura brasileira e na forma de escrever de muitos escritores, de entre os quais se destacam Oswald de Andrade e Mário de Andrade, com as suas propostas revolucionárias, antropofágicas, na procura de uma identidade nacional, popular e primitivista.
Baltasar Lopes afirma, num dos seus poemas “A minha principal certeza é o chão em que se amachucam os meus joelhos doridos/ mas todos os que vierem me encontrarão agitando a minha lanterna de todas as cores/ na linha de todas as batalhas.”
Ao que Jorge Barbosa acrescenta “Viver sempre vergado sobre a terra, a nossa terra (…)”
A literatura dessa época, em Cabo Verde, que conviveu com a Presença e o Neo-realismo português, foi marcada principalmente pelo diálogo com a literatura portuguesa, lusófona e brasileira, nomeadamente pelo diálogo com a literatura presencista e neo-realista portuguesa, de um Redol, Namora, Manuel da Fonseca, e, entre Baltazar Lopes, com o seu Chiquinho, e José Lins do Rego, com o seu Menino dos Engenhos; entre Jorge Barbosa e Manuel Bandeira, com o tema da pasárgada, sempre presente, e também pela intertextualidade entre os Flagelados do Vento Leste e Chuva Brava, de Manuel Lopes, com as obras do Sertão e do Nordeste brasileiro de Guimarães Rosa e Graciliano Ramos.
Os Claridosos, de facto, fizeram questão de criar obras em que misturavam a língua portuguesa com palavras e expressões crioulas como corolários do que seria o português cabo-verdiano, o que não existe, propriamente, na medida em que, em Cabo Verde não se fala, no dia-a-dia, o português, mas sim o crioulo, ou a língua cabo-verdiana, acabando, assim, por criarem uma literatura de cariz própria, lusófona, em certo sentido. De salientar que uma grande percentagem de escritores cabo-verdianos, dessa fase do modernismo cabo-verdiano, escreveu poemas em português e em crioulo, mas sempre com a reverberação da cultura e identidade cabo-verdianas em diapasão com a portuguesa, tendo em conta, até, a preocupação em contestar e retratar a situação de abuso, opressão e abandono a que os cabo-verdianos estavam votados pelo regime colonial.
Finalmente, na nova vaga de escritores cabo-verdianos, surgida após o 25 de Abril de 1974, e a Independência Nacional, em 1975, os, digamos assim, Pós-Claridosos, a dita lusofonia, encontra-se já um pouco estiolada e ténue, dada a grande preocupação universalista presente nesses escritores da aldeia global e planetária que já diversificam as latitudes e longitudes das suas leituras impregnando as suas escritas de ressonâncias das mais diversas literaturas mundiais e menos da literatura lusófona. Diga-se, de passagem, que, nesses escritores, a questão da caboverdianidade e da língua materna é quase que fulcral e um ponto de honra, com um significativo número de escritores bilingues, que procuram um bom desempenho no manuseio e fluência da língua portuguesa e nas questões de cariz lusófono.
É mister dizer ainda que a língua cabo-verdiana se formou nos primórdios da colonização, tornando-se, já no Séc. XVI ou XVII, numa língua nacional que funda a nação cabo-verdiana, constituindo um fator identitário. E, o curioso dessa questão da lusofonia e bilinguismo é que, em Cabo Verde, o fenómeno de aculturação aconteceu de forma inversa, pois que, em diversas situações, não foram os colonizados a assimilar a cultura do colonizador, mas sim o colonizador a assimilar a cultura do colonizado, resultando dessa simbiose a cultura cabo-verdiana e lusófona.
Aliás, a literatura oral cabo-verdiana, através dos Finason da ilha de Santiago e dos Kolá, ou Koladera da ilha do Fogo, constituem provas evidentes de que os cabo-verdianos têm uma pujante literatura em língua cabo-verdiana, ao lado de uma rica literatura em língua portuguesa, de base lusófona, tendo em conta o sincretismo patente nessa cultura cabo-verdiana, por um lado, e a idiossincrasia crioula do cabo-verdiano, por outro lado.
Há textos que se referem a essa questão, em que alguns analistas lusófonos se queixam das atitudes de muitos conterrâneos que, em chegando a Cabo Verde, começam a “falar aquela algaraviada do povo que ninguém entende”.
A fim de rematar alguns pontos de vista sobre a lusofonia, volta-se à questão de que os cabo-verdianos não são bilingues, embora haja um forte substrato lusófono na identidade cabo-verdiana.
Realmente, em Cabo Verde, segundo disse o nosso linguista Manuel Veiga, “a vida, em Cabo Verde, decorre em crioulo – pensa-se em crioulo, sente-se em crioulo e ama-se em crioulo”; o quotidiano do povo cabo-verdiano é totalmente em crioulo e é menos do que 1% o tempo que se despende à língua portuguesa no dia-a-dia, pelo que não há um bom domínio da língua portuguesa, oficial, como o da língua materna, nacional, para não dizer que é mesmo bastante deficitário o desempenho da maioria dos cabo-verdianos na utilização da língua portuguesa, o que nos leva a concluir que, de facto, há uma situação de diglossia em Cabo Verde como sugere Dulce Almada e não de bilinguismo.
Passando então à Literatura Oral, começaríamos por abordar a questão da oralidade e da oratura, e as imbricações existentes entre o local/insular e o universal, principalmente nas apropriações de temáticas e assuntos pertencentes ao legado de literaturas clássicas universais, pela oralidade local, que as recriam e grifam de cores e corpos locais/insulares.
A oralidade é a expressão do pensamento, que se não faz por escrito, ou por grafia, mas sim através da palavra dita, verbal. Não significa que não poderá ser escrita, mas sim que, inicialmente, foi formulada verbalmente pela palavra falada.
Quase que desde os primórdios dos tempos que a comunicação foi veiculada de forma oral, não obstante ter sido feita, também, através das pinturas rupestres, das representações ideográficas, do alfabeto e da escrita cuneiforme, etc.; ou ainda do som dos tambores e de outras formas de comunicação, como gestos e fumos.
Antigamente, muito remotamente, a forma de comunicação e de relatos de acontecimentos, de histórias e de anúncios vários, eram feitos através da comunicação oral. Inclusive, as grandes manifestações culturais e poéticas foram transmitidas oralmente, antes da invenção da escrita, desde a Grécia antiga, dos Aedos, e da Roma antiga; desde as grandes civilizações Egípcia e dos Hindus, com os Vedas, aos Maias, Incas e Aztecas, até aos Bardos Celtas, aos Trovadores Ibéricos e aos Cancioneiros populares e repentistas.
Mesmo depois do aparecimento do papel, da imprensa e do manuscrito, a oratura, ou oralitura, persistiu ao serem impressos relatos, contos, lendas e poemas orais, dos jograis e arautos, resgatados ao longo de gerações, por se manterem as marcas, as técnicas, o estilo, o sabor e a peculiaridade da oralidade em que foram veiculadas.
A Literatura Oral esteve sempre ligada às lembranças, às memórias, às narrativas, aos folclores das populações e à cultura popular como garantes de transmissão de conhecimentos e de factos históricos e sociais, etnográficos, fazendo parte do quotidiano das pessoas e da coletividade.
A literatura oral esteve sempre ligada ao canto, à dança, às estórias, aos provérbios, às adivinhas e aos contos populares, feitos para serem ouvidos, principalmente, por aqueles que não sabem ler
Mesmo hoje, ainda, a oralidade está na ordem do dia através do áudio, dos livros, da rádio e televisão, dos CD, da informática, do cinema, da literatura, e de tantos outros meios de comunicação.
Com as recolhas das tradições orais, passadas para a escrita, preserva-se a memória do tempo e das coisas, resgata-se a vida que se vivia antigamente e o mundo em que viviam os nossos antepassados, com as suas formas de ser e de estar, de pensar e de viver.
A oratura, a Literatura Oral constitui documentação importante para a história de um país, mas também para os sociólogos, antropólogos e investigadores em geral. Existem crenças, mitos, lendas, folclores, conhecimentos e saberes que constituem a memória coletiva do povo e a sua identidade, que são veiculadas oralmente de geração em geração, como forma de preservar e continuar a cultura dos ancestrais.
Hoje em dia, há tendência para se recuperar essa tradição que caiu um pouco no esquecimento com a modernidade das novas tecnologias, através da promoção de leituras nas escolas e em tertúlias culturais, nos teatros, e na recuperação das tradições.
Sendo a literatura oral, popular e anónima, pertencente à memória coletiva, ela é versátil e de versões variadas, visto que “cada um que conta um conto, acrescenta um ponto”, pois que cada intérprete faz a sua própria leitura e interpretação, já que há sempre uma recriação dessa invenção, que surgiu para ser dita e ouvida, sendo apreciada, de forma lúdica e poética, com a empatia e a emoção da participação e do compartilhar, no momento e tempo em que é veiculada.
A literatura oral, em África, possui uma grande tradição, sendo, durante muito tempo, um meio privilegiado de transmitir conhecimento e ensinamentos sociais e morais, desempenhando um papel importante no quotidiano das populações, sob formas várias, como o mito, a epopeia, os cantos fúnebres, as poesias encomiásticas e de louvor, com profunda ligação às crenças, à natureza e aos deuses. Possui também uma vertente épica, muito elaborada, veiculada por alguns especialistas, como os célebres Griotts, enaltecendo feitos heroicos, de guerreiros e senhores, e de louvor que, como em outras paragens do mundo, viajam de terra em terra a cantar as suas canções e poemas.
Depois de nos termos debruçado um pouco sobre a literatura oral africana, passemos às literaturas orais ocidentais, começando por aquela de que, praticamente, derivou todas as outras literaturas europeias e americanas subsequentes à grega.
De facto, pode-se dizer que a literatura grega influenciou toda a literatura ocidental, desde a Roma antiga à literatura europeia medieval e ao renascimento, tornando-se o protótipo de beleza e estética para todas, sem contestação.
Os investigadores da literatura, ou da história da literatura, tomam, geralmente, as obras Ilíada e Odisseia, de Homero, que são consideradas obras-mestras e imortais de toda a literatura universal, como as que marcam o nascimento da literatura grega, por não terem nenhuma referência de outras que se lhes tenham precedido.
São obras que atravessaram várias gerações, de forma oral - quer com acréscimos de outros ou não, mas, sem dúvida alguma com a expressão, a forma e o estilo original da época.
São poemas épicos que retrataram a gesta e as histórias de um povo, as suas guerras e os seus heróis, transmitidos, durante séculos, oralmente, de forma magistral, até à sua fixação escrita. Eram recitados e cantados por trovadores e contadores de histórias que iam de terra em terra com as suas liras, entre os séculos XI ou X antes de Cristo.
Envoltos em relatos míticos e maravilhas, pejados de Deuses e Deusas milagrosos, esses vinte e quatro cantos de cada uma das epopeias retratam, no caso da Ilíada, a guerra de Tróia e os seus heróis, e, no da Odisseia, a viagem de Ulisses e a sua descoberta de outros mundos e mistérios, todos, no entanto, centrados no carácter e valor humanos.
Verdade é que são obras prodigiosas, em termos narrativos e estéticos, e, portanto, uma literatura oral sublime, do ponto de vista literário, que serviu de inspiração e de base a quase toda as outras obras subsequentes, de carácter épico, inclusive as já escritas.
A literatura oral é riquíssima. Para além dos poemas épicos de Homero, há as teogonias de Hesíodo, os laicismos de Safo e Alceo, de entre outros; as elegias gregas, o lirismo satírico amoroso e elevado; os epigramas e tragédias, as comédias, baseadas em mitos, lendas e dramas, das quais se destacam as de Ésquilo, de Sófocles e de Eurípedes, até à prosa e à história com Heródoto.
Passando a outras literaturas ocidentais que terão influenciado ou constituído germes e pontos de partida para a literatura oral de Cabo Verde, tendo em conta que a nossa abordagem é na perspetiva de uma literatura comparada, vamos ater-nos, ainda que de forma breve, nalgumas literaturas não orais, mas iniciáticas e fundantes, tais como as canções de gestas e as gestas épicas, que não deixam de ter laivos e marcas evidentes da oralidade.
Começando com a Literatura Latina, da Roma antiga, que foi praticamente uma mimese da literatura da Grécia antiga, a referência é de uma poesia épica que, não sendo oral, influenciou, entretanto, a literatura oral europeia, medieval, que se repercutiria, depois, nas literaturas das colónias dos países europeus.
De se destacar aqui a veia artística de Virgílio que terá influenciado vários grandes escritores, desde Dante até ao Milton ou Shakespeare; bem como, ainda, de entre outros, como Lucrécio, Ovídio, Catulo e Cícero, e o grande Horácio, conhecido e usufruído por, praticamente, todos os grandes escritores ingleses, com enorme influência na literatura moderna, tanto da Itália, como da França e da Inglaterra.
Mas, a influência maior vem das gestas, das lendas e mitos, e das façanhas fabulosas dos Reis e Heróis, e suas damas, tais como as histórias de Carlos Magno, de Artur e de Ricardo Coração de Leão.
É o ambiente de superstição, de feitiçarias e bruxarias.
Dos franceses, vêm as chansons de gesta, os cantos de feitos e aventuras, que aparecem depois dos Troubadours e dos Trauveres.
É a poesia épica que canta o país e os grandes feitos nacionais e patrióticos, destacando-se aqui as canções de Rolando, o cavaleiro Carlos Magno, que aparece nas histórias das ilhas, com o ambiente local, mas hiper fantasioso.
A seguir, aparecem-nos as lendas e as fábulas de animais, por assimilação das fábulas de Esopo, que viriam a resultar nas célebres fábulas de Lobo e Xibinho, de Tia Ganga, de Pedro, Pálo e Manel, que nos lembram os três mosquiteiros.
Da Alemanha, vêm-nos as histórias de grandes tesouros e suas maldições, a partir do ciclo épico dos Nibelungos, que, diga-se, resulta de versões de histórias variadas e populares, orais.
São tais as lendas islandesas e os contos de fadas, assim como os contos de encantadas, com as varinhas de condão e os encantamentos, em que aparecem os reinos do sobrenatural e do oculto, da feitiçaria e bruxedos, da magia, das capelas mágicas e dos números aziagos.
Das gestas e cantigas medievais, de grande influência na literatura oral de Cabo Verde, destacar-se-ão as cantigas de amor e de amigo, que se denotam nos versos de conquista badio, ou presentes nos finasons e nas coladeiras (colá) da ilha do Fogo.
Depois, há as cantigas de escárnio e maldizer que serão os Konbersu Sábi ou Pása Piada, da ilha de Santiago, ou o Curcutisan da ilha do Fogo, os quais têm paralelo, ou similitude, com as cantigas repentistas do nordeste do Brasil, que se originaram do desafio ou desgarrada portuguesa, de origem árabe, ou do canto Amebeu Grego, em que dois contendores fazem uma disputa, num duelo poético, cantado, onde trocam insultos ou lançam perguntas e respostas, em jeito de adivinhação.
Essas poesias populares terão bebido muito da religiosidade do cabo-verdiano, que acabou por apreender e adaptar-se à realidade local e coletiva, as lições, as histórias e as imagéticas bíblicas.
À semelhança do Brasil, a literatura oral em Cabo Verde possui muitas histórias e casos com animais e personagens hilariantes e cómicas, algumas picarescas e anedóticas, outras de cenários de fábulas com princípios éticos, moralistas e pedagógicos.
A tradição oral (contos, fábulas, mitos e histórias populares), que antecede a literatura escrita, tanto em português, quanto em língua cabo-verdiana, e que dá conta da identidade cabo-verdiana, pelos seus temas, formas e mundividência, é vista a partir dos materiais existentes, e de materiais de estudo de alguns dos estudiosos e críticos, estabelecendo parâmetros informativos sobre a literatura em língua cabo-verdiana com opiniões, críticas e estudos, numa perspetiva atualizada.
Ao falar-se da oralidade na literatura cabo-verdiana, fala-se também da língua cabo-verdiana e de uma das propriedades fundamentais dessa oralidade que é a de possuir a capacidade explicativa na língua de origem (vulgarmente designado crioulo), que surgiu do encontro da língua portuguesa com várias línguas africanas, e que, muito cedo, se tornou língua de comunicação da população cabo-verdiana, revelando-se como fator de identidade e da existência de uma nação.
Essa oralidade, na sua vertente literária, manifesta-se, principalmente, em cânticos (cantos de dança - o batuque - e de trabalho), a modos dos Griots africanos, e gestas medievais europeias, atualizadas no dia-a-dia da população.
Falamos, pois, de uma história da literatura cabo-verdiana que, à semelhança da maioria das literaturas, começa com a oralidade e se vai desenvolvendo até à escrita, criando os géneros literários que a compõem (surgidos ao longo dos tempos), quer lírico, quer narrativo e dramático, e que permitem chegar a uma interpretação das categorias de pensamento em que se expressam as representações coletivas.
Para além da análise literária que nos possibilita ter um corpus literário com características estéticas e criativas, encontramos, também, a questão da identidade cabo-verdiana e da formação da nação cabo-verdiana; a situação socioeconómica e cultural, húmus e génese da criação literária oral do período pré-independência; a questão epistemológica e cognitiva e os temas, na perspetiva formal e dos aspetos sociais, culturais e antropológicos, a partir da criação literária, enquanto corpus coletivo ligado ao saber popular, e também erudito, pois, tanto a literatura oral como a escrita representam o universo sociocultural cabo-verdiano de forma literária.
A abordagem de aspetos ligados à língua cabo-verdiana – o crioulo - torna-se obrigatória, enquanto suporte de uma literatura em língua cabo-verdiana, muito dinâmica com uma significativa publicação e um número considerável de escritores.
A forma como surgiu e se foi delineando e moldando, com características próprias e específicas, passíveis de refletir a sociedade cabo-verdiana e nela se refletir, também, bem como a possibilidade de se tornar matéria estruturada e científica de estudo, capaz de possibilitar um vasto conhecimento da mundividência e modo de ser e de estar do cabo-verdiano, constituem também proposições desta investigação.
In: Cabo Verde: Algumas Vertentes do seu Universo Etnocultural