MúSICA
Música cabo-verdiana
Por: Danny Spinola
No que concerne à música e à dança, pode dizer-se que elas são, de facto, ímpares e se encontram bem presentes no quotidiano cabo-verdiano.Não havendo até agora estudos consequentes sobre a origem das músicas cabo-verdianas, avança-se, contudo, a hipótese de que elas teriam surgido dos lamentos dos escravos e das cantigas de trabalho no campo e nos trapiches, onde os escravos desempenhavam as funções de animais de tração moendo cana sacarina para a confeção da aguardente e do mel.
Quase tantas quantas as ilhas são as músicas típicas cabo-verdianas. Sendo a maioria regional, convém falar aqui das nacionais e de algumas regionais, pelo peso que possuem enquanto manifestações culturais identitárias do povo cabo-verdiano.Morna, Coladeira e Funaná são os três géneros musicais cabo-verdianos mais importantes e que corporizam também três formas diferentes de dança.Com forte influência da música brasileira, principalmente, e da América Latina, em geral, a Morna e a Coladeira, que terão sido originadas da música portuguesa e da música africana (ou da música árabe, segundo alguns), são músicas intimamente ligadas ao sentimento ilhéu e ao quotidiano arquipelágico. A primeira, de melodia suave e doce, assemelha-se muito ao Fado português, às baladas ou ao Blues, retratando, na sua poesia, a nostalgia, a saudade, o amor e a desdita, enquanto a Coladeira, já de ritmo mais acelerado, mais agitado, tende a aproximar-se do Samba, das modinhas brasileiras e do Merengue, radiografando o quotidiano crioulo com uma certa mordacidade, chacota, folguedo e crítica.
O Funaná
Que terá surgido, inicialmente, no meio rural da Ilha de Santiago, entretanto, possui um ritmo muito mais acelerado que o da Coladeira e mais próximo da África, sendo muito peculiares os instrumentos utilizados na sua execução – a Gaita ou Acordeão, de origem europeia, e o ferrinho (um ferro sobre o qual se faz deslizar um outro ferro ou uma faca, à semelhança de um reco-reco).Para além de possuir um ritmo frenético e eletrizante, o Funaná possui também ritmos lentos e compassados, que são designados de Funaná-Samba e Funaná-Marcha, havendo ainda outros ritmos como o Funaná-Valsa, o Funaná-Maxixe, etc.
A letra do Funaná retrata o quotidiano da população, a vivência ilhoa, os sentimentos e a filosofia do cabo-verdiano, constituindo também um meio de crítica e de ridicularização de comportamentos e atitudes.Todas essas músicas são, ao mesmo tempo, danças, com um quê de erótico, e exótico sendo a Morna mais sensual e o Funaná mais lascivo.BatucoDas músicas e danças regionais são de se destacar o Batuco, típico da Ilha de Santiago, em cujo ritmo se manifesta a presença africana; a Tabanca, também típica de Santiago e próxima da África, e os Colá das ilhas de S. Vicente, Sto. Antão, Fogo e Brava, são misturas de ritmos e manifestações artísticas africanos e europeus, para além de constituírem um exemplo vivo de um certo sincretismo religioso existente em Cabo Verde.
O Batuco
Que terá nascido praticamente com o Homem cabo-verdiano e que vem sendo praticado desde então, apesar da tentativa do regime colonial-em silenciá-lo, é consagrado, geralmente, aos momentos especiais de festas ou ocasiões de muita alegria (como casamentos, batizados, etc.) e é já, em si, uma manifestação popular de liberdade, alegria e afã de viver. É, ao mesmo tempo, poesia, cântico, música e dança, com um ritmo eufórico e uma orquestração característica, em que os únicos sons melódicos são as vozes (a solo e coro), e o ritmo marcado com as mãos espalmadas em chumaços de pano, colocados entre as coxas das batucadeiras, ou pelo bater sincopado de palmas. Há sempre uma ou duas mulheres no terreiro (interior do círculo formado pelas batucadeiras) que dançam mexendo apenas os pés e as ancas, num mover, ora lento, ora frenético, estando as cinturas e as nádegas envoltas em panos apertados.Enquanto poesia, o Batuco é caracterizado por um determinado momento, em que não se dança e o canto, Finason, entoado por uma cantadeira, é muito elaborado e filosófico, apesar de, ser improvisado, com referências à mundividência e filosofia de vida da população.
Tabanca
A Tabanca, por seu lado, é fruto de uma miscigenação étnica e cultural e produto de um sincretismo religioso. É uma manifestação popular, de acentuado carácter festivo e de rua, que conjuga também cântico, música, dança e alegria, em procissões que se realizam em determinadas datas sagradas. Reunindo tambores e búzios, cornetas e apitos, um grupo de pessoas, vestidas de forma especial, sai em cortejo pelas ruas, marchando ou dançando ao compasso dos ritmos sincopados dos tambores, das cornetas e dos búzios, que são acompanhados de cântico e de coro.Mas a Tabanca é, sobretudo, uma agremiação, ou uma sociedade ritualista, com uma organização sólida à volta de um princípio de vida, donde a solidariedade, a entreajuda e coesão comunitárias se revelam como signos de uma sabedoria popular.
Falando agora dos Colá das várias ilhas, que, no fundo, são similares às Tabancas da Ilha de Santiago, é de se destacar que todos eles são festas consagradas aos santos patronos de determinadas localidades e que decorrem, normalmente, entre os meses de Maio e Julho, com maior ênfase em Junho.Os Colá são manifestações e rituais populares, resultantes de um sincretismo religioso, que têm tambores e apitos como instrumentos musicais e que se fazem acompanhar de cânticos a solo e em coro, existindo, entretanto, algumas particularidades que os diferenciam. Enquanto os Colá de S. Vicente e de Santo Antão se evidenciam por um toque mais frenético e acentuado, acompanhados sempre de dança. encenada por quatro pessoas que se postam em forma de cruz, dando umbigadas (dois a dois, de forma rítmica e revezada), os Colá das ilhas do Fogo e da Brava caracterizam-se pelo seu acentuado ritual à volta da confeção do repasto para a festa do dia santo, sendo então o repicar dos tambores acompanhado pelas batidas de paus no rebordo do pilão e pelo ritmo do pilar do milho, (koletxa) em casa do festeiro.
Corridas e danças de cavalos ao ritmo dos tambores nos cortejos que se dirigem às Igrejas, constituem também particularidades destes dois Kolá, que têm como símbolo uma bandeira, em contraponto aos barcos presentes nos Kolá de S. Vicente e de Sto Antão.
Curcutisan
Curcutisan é uma espécie de poesia oral ou de cantiga popular, que se assemelha muito às cantigas medievais portuguesas conhecidas por cantigas de escárnio e maldizer. Possui também um certo paralelismo com as cantigas repentistas do nordeste brasileiro, por ser toda ela inventada, de repente, isto é, improvisada, no momento em que duas cantadeiras se encontram e começam a dizer mal uma da outra, de forma metafórica, em geral, e, às vezes, de forma muito crua e directa, mas sempre numa toada melodiosa ou num tom poético.Curcutisan é uma cantiga de desafio, de contenda verbal e de esperteza, do género da desgarrada portuguesa, em que dois contendores se injuriam mutuamente, de forma jocosa, usando uma linguagem mordaz e obscena, por vezes, com intenção ofensiva e maldizente.Muitas vezes, é utilizada para satirizar os grandes senhores proprietários de terras ou mesmo a sociedade em geral, caricaturando aspetos imorais das pessoas ou o desregramento social.
Originária do meio rural foguense, a Curcutisa (discussão) veio da palavra curcuti, ou cracuti, que significa insultar, ofender o outro. É conhecida também por Rodriga ou Rafodjo e possui uma certa analogia ou paralelismo com o Konbersu Sábi, ou Pása Piáda, da ilha de Santiago, em que, também, duas pessoas se insultam mutuamente, de forma poética, com o fito de causar riso, recorrendo, principalmente, a um jogo de palavras com duplos sentidos. O humor e a presença de espírito para uma resposta pronta, rápida e engraçada, são indispensáveis nestas cantigas.
A Curcutisan, no fundo, é uma coladeira cantada em bailes populares, onde se toca violino, violão, viola, cavaquinho e tambor.Uma das maiores cantadeiras da ilha do Fogo desse género de cantiga chamava-se Ana Procópio, mas há outras ainda, como, por exemplo, Nha Tintina Mané di Bédja, Clara de Camília, Nha Maquilina e Amélia Djudjú.
Morna
A Morna tornou-se, há pouco tempo, Património Cultural Imaterial da Humanidade.Já tinha sido consagrada como património nacional com o dia 03 de dezembro como momento especial para a sua comemoração e exaltação tendo como patrono o imortal músico e compositor Francisco Xavier da Cruz, (B. Léza).A morna foi incontestavelmente e sempre considerada, ao longo dos tempos, das mais genuínas e importantes manifestações culturais e artísticas cabo-verdianas,apesar de haver sempre uma certa controvérsia e alguma polémica à volta do seu lugar de origem e da sua data de nascimento/aparição.
Os investigadores têm divergido um pouco sobre o seu surgimento, mas têm sido unânimes sobre a sua essência, que não foge ao vaticínio de um dos seus maiores cultores, o imortal Eugénio Tavares, que a considerou “a alma do povo cabo-verdiano”.Ele teria dito, corroborado pelo escritor e investigador Teixeira de Sousa, de que ela nasceu na Boavista, mas cresceu e vingou-se na ilha Brava, onde foi sempre cultivada e idolatrada como o que de mais precioso se produziu.Sobre o seu epíteto são várias também as versões, desde a do imortal vate e enciclopedista das ilhas, de seu nome José Lopes, que aventou a possibilidade de ela ter surgido do termo inglês to mourn (lamentar) e do termo francês morne (triste), tendo outro vate cabo-verdiano, o imortal Baltazar Lopes, dito que a morna vem do masculino morno.Ainda sobre a sua origem, encontramos versões diversas, plasmadas em várias obras e em alguns estudos, mas todos inconclusivos quanto à sua data de nascimento tendo, entretanto, vingado a ideia de que se terá originado na Boavista, crescido na Brava e vivificado em S. Vicente.Segundo um estudo de Germano Lima, inserto no seu livro Boavista - Ilha de Capitães, a morna surgiu a partir das coladeiras, ou colá, descendente do batuco levado pelos escravos da ilha de Santiago, que tinham a tradição de um canto com génese congolesa (Povo Bantu).
Nesse seu estudo, ele se refere ao famoso Lundum da Boavista, que aí existe ainda hoje; que seria o batuque batuco originário do Congo que deu origem ao Fado (isto, segundo uma teoria do investigador brasileiro, José Ramos Tinhorão, que, pelo meio, traz à colação o fandango) e, consequentemente, à Morna.Vários investigadores da música cabo-verdiana despontam nessa senda de explicar a origem da Morna, de entre os quais Eugénio Tavares (do livro Mornas, Cantigas Crioulas), Pedro Cardoso (do livro Folclore Caboverdeano), José Bernardo Alfama (do livro Canções Crioulas e Músicas Populares de Cabo Verde), Jaime Figueiredo com o seu sentido da Morna e da Coladeira, Manuel Ferreira (do livro A Aventura Crioula), Moacyr Rodrigues, Eutrópio Lima e Vasco Martins, com alguns pontos de vista em comum.
Uma das obras de referência nesta matéria é a do músico e compositor Vasco Martins, (ele próprio investigador) principalmente no que tange às caraterísticas musicológicas da Morna. No seu livro A Música Tradicional Cabo-verdiana - I (A Morna), ele faz afirmações importantes e perenptórias sobre a idiossincrasia da Morna, enquanto música, enquanto particularidade sui generis, harmónica e melódica, não obstante a sua costela europeia, negando, no entanto, qualquer aporte da música árabe, refutando algumas teses delineadas nessa linha.
Outras obras de referência são as de Jorge Fernandes Monteiro, (Jotamonte), publicadas nos anos 80, particularmente por serem legados de partituras e letras de Mornas de grandes músicos e compositores, como Eugénio Tavares, Francisco Xavier da Cruz (B. Léza), e ele próprio, com destaque para Mornas para piano, das quais constam partituras e letras de 56 Mornas de autores vários.De entre outras grandes obras sobre a música de Cabo Verde, sejam referidas de Ariel de Bigault, Les Musiques du Cap-vert; de Vladimir Monteiro; Kap Verde Band de Carlos Gonçalves; e Notícias que Fazem História, de Gláucia Nogueira. Queremos destacar aqui algumas, , obras que retratam a música e os músicos da Ilha Brava, mais particularmente as Mornas e os seus grandes cultores (compositores e intérpretes).
Menção especial merece o livro Ilha Brava - A Terra, A Gente, O Mar, de Benvindo M. Oliveira Leitão, na medida em que, para além do estudo e da divulgação da história e da cultura da sociedade bravense, de pendor etnográfico e antropológico, com informações preciosíssimas, possui um manancial de textos de músicas bravenses que dão todo o colorido da ilha e das suas gentes, retratando também as figuras ilustres que fizeram história ao longo do tempo. Sobre a Morna encerra capítulos ímpares que nos elucidam sobre a sua especificidade, que se caracteriza por “um carisma sentimental, amorável, de saudosismo e de gratidão”, cantando e acarinhando a namorada (cretcheu); exaltando a meiguice da mãe que o gerou, enaltecendo a terra que o viu nascer, lamentando a partida e a separação com a saudade sempre presente.Segundo este livro, a Morna na ilha Brava, tem a sua particularidade na forma sincopada da sua execução, feita ao som do violino, da viola, do cavaquinho e do violão.
O livro é um repositório ainda de imagens excecionais da ilha e das suas gentes.Outra obra de eleição é a que reúne, com o título Lágrimas de Djabraba, as letras e composições do grande trovador de Mornas Rodrigo Peres. Nessa coleção de Mornas há referências também aos grandes compositores e intérpretes bravenses com destaque esta figura tutelar da morna.Num outro registo importante vem em destaque o nome do músico, compositor e intérprete José Gomes da Graça, conhecido por Djidjinho.Segundo o escritor e académico Artur Vieira, no livro Trajetória de um Génio, este mestre da música cabo-verdiana, a par das mornas, revelou-se poeta, compositor, intérprete de carisma telúrico, versátil em coladeiras, mazurcas, valsas, marchas, mas também mestre perfeito na execução das modinhas brasileiras.Nesse livro, Artur Vieira destaca os grandes nomes da constelação musical bravense, desde os autores criadores até aos artistas intérpretes, citando nomes e feitos não conhecidos do grande público, o que torna o seu livro deveras precioso e inestimável (sendo a razão para o destacarmos aqui neste dossier).Abstemo-nos de citar aqui nesta introdução ao dossier os nomes destes ilustres filhos da Brava, cultores da Morna, já que os textos subsequentes extraídos dos livros em destaque, o fazem magistralmente.
A completar esse dossier sobre a Morna destacamos, entretanto, mais dois textos fundamentais: um sobre Eugénio Tavares, considerado por todos como um dos mais genuínos compositores da Morna, com a sua veia poética e melódica de excelsa beleza e quase inigualável expressão, numa linha clássica e equilibrada; outro sobre o excecional Francisco Xavier da Cruz - (B. Léza), a partir do livro que dá uma imagem impressionante deste que foi, a par de Luís Rendall, o seu mestre, e outro, um inovador da Morna, ao se render a uma certa influência da música brasileira, introduzindo o meio tom na composição. Segundo Vasco Martins foi um dos mais distintos compositores cabo-verdianos e que soube produzir uma Morna original e evolutiva, de rara elegância!Segundo os estudiosos, a Morna nasceu na Boavista, no seio da população, tendo depois evoluído na Brava e em S. Vicente, até se tornar uma música cristalizada de todas as outras ilhas que também a cultivaram.
Na ilha de Santiago, para além dos já bem conhecidos compositores de Morna, como Ano Nobo, Djodja, Manuel Clarinete, Bilocas, Fernando Queijas, Daniel Rendall e Kaká Barboza, há vários outros que os antecederam ou que marcaram com as suas mornas as serenatas santiaguenses, tais como: Henrique Lopes, pai de Ano Nobo, Ney Fernandes, Zezé di Nha Reinalda, Djirga, Francisco Fragoso, Jorge Pedro Borja enaltecidas por Pedro Cardoso no seu Folclore Caboverdeano.
Djodje Matias, Manelinho Bala, com especial destaque de António Cortez, autor de belas mornas, S. Vicente, sem dúvida alguma, teve e tem também grandes compositores, como Lela de Maninha, Manuel D’Novas, Olavo Bilac, Muchin d’Monti, Inluzim, Sérgio Frusóni, Frank Cavaquim, Morgadinho, Ti Goy para além de vários outros mais modernos. Nem vamos falar aqui dos intérpretes que são tantos e todos esmerados na arte de cantar a Morna.No contexto geral são de se referir, ainda, os nomes de Antero Simas, Betú, Alcides Brito, Daniel Spencer, Djo Meloy, Jorge Humberto, Danny Mariano e, é claro, o excepcional Paulino Vieira com as suas composições e orquestrações de ouro.
©In: Cabo Verde: Algumas Vertentes do seu Universo Etnocultural